sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Santa Maria, a cultura da negligência

CUIDADO COM ESTE TEXTO! É PRECISO LER TUDO, MAS , NA ESCRITA, FAÇA UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO. ELA NÃO ESTÁ NA COLETÂNEA, MAS , DO JEITO QUE COLOQUEI TUDO, PODE-SE DEPREENDER A TAL PROPOSTA.

TEXTO 1
''A sentença kafkiana pode ser adaptada às circunstâncias históricas e sociais do Brasil atual: “você está condenado à morte por negligência”.
O clichê de que o Brasil é o país do “jeitinho” e, mais recentemente, da “gambiarra” acoberta o fato infinitamente mais perturbador da “negligência” elevada a Razão de Estado. A teoria da Razão de Estado se refere aos usos e abusos que governantes fazem da Lei em nome da “segurança” do Estado. Ocorre que, em nosso país, a corrupção tornou-se essa espécie de lei, a maior de todas, porque todos (políticos e cidadãos comuns) se fazem soberanos para praticá-la. No mesmo país, o Estado foi reduzido a algo como um “prostíbulo”, um espaço em que a lei é a da exceção, ou do “fora-da-lei” legalizado.
Neste quadro geral, persiste, no entanto, a “cultura” como o modo de vida que desenvolvemos e repetimos diariamente enquanto somos uma sociedade. Certamente poderíamos questionar se ainda nos autorrepresentamos como “sociedade”, mas não há espaço neste artigo para isso. Já quando falamos de “país” não estamos meramente generalizando, mas referindo-nos às condições da cultura partilhada por todos, cuja complexidade da conta a ser paga o será por todos e cada um''.
TEXTO 2
Ao mesmo tempo, em situações de catástrofe, a cultura da negligência espera que haja punidos individualmente. Se a Razão de Estado está em cena sustentando o Estado, nada melhor que haver um único culpado em situações de catástrofe. Se lembrarmos de crimes como o assassinato de Eloá por Lindemberg, da tragédia do Realengo e, por fim, o caso do da boate Kiss de Santa Maria transformada em campo de extermínio em janeiro deste ano, veremos que os poderes instaurados em torno do Estado se esforçam por acusar um indivíduo – ele mesmo culpado, é verdade, mas não o único culpado, não a origem de todo o mal que salva o Estado – e instituições em geral, como, por exemplo, a mídia, em sua responsabilidade com a sociedade. Na cultura da negligência não há esmero em “ler” melhor o livro da sociedade que ajudamos a escrever todos os dias.
Seria fácil repetir o clichê de que “a culpa é do governo”, mas o clichê acobertaria o fato político mais profundo dos interesses individuais da classe governamental contra o povo. O fato biopolítico de que estamos todos condenados à morte, seja por falta de políticas para a educação, a saúde, o trabalho, é mais do que evidente. Como dizia Kafka no texto da Colônia penal, não é preciso conhecer a sentença a qual se é condenado porque ela será inscrita na própria pele. O analfabetismo político é a grande boca que pronuncia essa sentença.
TEXTO 3
Por Fabrício Carpinejar. "Poeta, cronista e louco pela verdade a ponto de mentir"
 Morri em Santa Maria hoje. Quem não morreu? Morri na Rua dos Andradas, 1925. Numa ladeira encrespada de fumaça.
A fumaça nunca foi tão negra no Rio Grande do Sul. Nunca uma nuvem foi tão nefasta.
Nem as tempestades mais mórbidas e elétricas desejam sua companhia. Seguirá sozinha, avulsa, página arrancada de um mapa.
A fumaça corrompeu o céu para sempre. O azul é cinza, anoitecemos em 27 de janeiro de 2013.
As chamas se acalmaram às 5h30, mas a morte nunca mais será controlada.
Morri porque tenho uma filha adolescente que demora a voltar para casa.
Morri porque já entrei em uma boate pensando como sairia dali em caso de incêndio.
Morri porque prefiro ficar perto do palco para ouvir melhor a banda.
Morri porque já confundi a porta de banheiro com a de emergência.
Morri porque jamais o fogo pede desculpas quando passa.
Morri porque já fui de algum jeito todos que morreram.
Morri sufocado de excesso de morte; como acordar de novo?
O prédio não aterrissou da manhã, como um avião desgovernado na pista.
A saída era uma só e o medo vinha de todos os lados.
Os adolescentes não vão acordar na hora do almoço. Não vão se lembrar de nada. Ou entender como se distanciaram de repente do futuro.
Mais de duzentos e cinquenta jovens sem o último beijo da mãe, do pai, dos irmãos.
Os telefones ainda tocam no peito das vítimas estendidas no Ginásio Municipal.
As famílias ainda procuram suas crianças. As crianças universitárias estão eternamente no silencioso.
Ninguém tem coragem de atender e avisar o que aconteceu.
As palavras perderam o sentido.

Texto 4
Tragédia, além do luto, o final dos sonhos de 245 jovens que perderam suas vidas no incêndio da Boate Kiss, na madrugada de sábado, na cidade de Santa Maria. Desespero inominável de cada família, cada amigo, cada um de nós que sente, na perda de cada vítima, uma lesão maior à humanidade como um todo.
Indesculpável a ação dos seguranças em tentar barrar os garotos para que não saíssem sem pagar. Imperdoável a ausência de sinalização das saídas de emergência que condenaram vários a morrer intoxicados nos banheiros. Impossível adjetivar a conduta do(s) proprietário (s) que abriu o lugar sem o Alvará válido.
Mas, como em todos os episódios trágicos, desesperador, para nós pais de adolescentes é verificar a falha do poder público na fiscalização deste estabelecimento. A constatação de que não existe serviço público eficaz a prevenir tais tragédias, pela  ausência de condições  de segurança de tais locais e de fiscalização efetiva da permissão de funcionamento,  nos leva a concluir que somos todos, por omissão, assassinos dos sonhos de nossos filhos.
Choraremos longamente a falta de cada um, nos solidarizaremos com cada família, mas, infelizmente, ainda assim, não aprenderemos a lição de exigir a prestação pública eficiente para evitar novas tragédias. Aguardaremos a prestação jurisdicional para a condenação dos culpados e a indenização pelos danos materiais e morais sofridos pelos familiares, inclusive contra o órgão público responsável, mas, como sempre, seremos sempre surpreendidos por fatos como esse pelo simples fato que não aprendemos a ser cidadãos exigentes de nossos direitos.
E assim, seremos sempre culpados por cada filho nosso perdido!

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