quinta-feira, 25 de abril de 2013

Abaixo a igualdade.Hélio Schwartsman


25/04/2013 - 03h00

Abaixo a igualdade

DE SÃO PAULO - "Quando contava a meus amigos que estava escrevendo um livro intitulado 'Contra a Equidade', eles olhavam para mim como se eu tivesse chegado aoestágio final da loucura. Daria no mesmo se eu estivesse escrevendo 'Contra as Mães' ou 'Contra o Oxigênio'". A passagem, do filósofo Stephen Asma, foi extraída de "Against Fairness", que foi lançado nos EUA em dezembro passado. O livro, como já sugere o título, traz uma crítica à noção de equidade --ou de igualdade, se quisermos traduzir "fairness" de modo um pouco mais provocativo--, que se tornou central para o Ocidente.
Com efeito, dispensamos à equidade um tratamento próximo ao de relíquia sagrada. Ela figura até no "caput" do artigo 5º da Constituição brasileira, arguivelmente o mais importante da Carta, que reza: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)". É claro que muito disso não passa de conversa fiada, já que boa parte dos 78 incisos que se seguem, além de outros dispositivos constitucionais, nada mais faz do que estabelecer muitas distinções e das mais variadas naturezas.
De qualquer forma, o amor à igualdade ocorre também em nível visceral.
Nós todos condenamos o nepotismo, que entendemos como uma forma de corrupção, e aderimos incondicionalmente à ideia de "justiça social". Dividimo-nos apenas na hora de definir se ela deve atuar no nível dos resultados, como sustentam os defensores de cotas raciais, ou de oportunidades, como clamam os proponentes da meritocracia.
O que Asma faz, e com competência, diga-se, é problematizar o conceito de equidade. Começa lembrando que estamos biologicamente programados para favorecer os mais próximos. Se mães não dessem tratamento preferencial a seus filhos e não protegêssemos com mais vigor nossos familiares e amigos, mamíferos e aves não seriam viáveis nem tampouco a vida em sociedade. "Preferir é humano. O amor é discriminatório", escreve o professor de filosofia.
Hoje, sabemos até quais são os neurotransmissores mais intimamente ligados ao favoritismo. A bioquímica do amor está calcada na oxitocina e nos opioides endógenos. Sentimos prazer sempre que apoiamos os próximos.
Quando abandonamos o campo das ideias abstratas e entramos no da vida real, tendemos a relativizar um pouco nossas convicções excessivamente moralistas. Sim, condenamos magistrados e governantes que contratam seus filhos, mas não achamos tão ruim quando o dono de um bar chama a banda de seu irmão para tocar nas noites de sexta, mesmo sabendo que existem conjuntos melhores por aí em busca de um palco. É possível até mesmo construir uma boa argumentação para mostrar que haveria infração ética se o empresário não ajudasse o irmão.
Daí não decorre, é claro, que políticos devam ser autorizados a contratar seus parentes. A impessoalidade do poder público é um valor justificável, mas é preciso atentar se não estamos nos valendo de uma indignação seletiva, que não aplicaríamos a nossos amigos.
Agir em plena concordância com a cartilha da equidade é para santos, não para humanos, sustenta Asma. E é muito melhor e mais interessante ser humano do que santo. Ele cita até um trecho da autobiografia de Gandhi em que o líder indiano diz expressamente que quem busca o bem não deve cultivar amizades nem amores exclusivos, porque eles introduziriam lealdade, parcialidade, vieses e favoritismo.
O autor também descreve algumas situações que ele julga absurdas que são motivadas pelo culto à igualdade que acabamos criando. Ele conta que ficou chocado ao descobrir que hoje em dia as escolas premiam com medalhas todas as crianças que participam da prova de corrida. A ideia é poupá-las dos dissabores da sensação de derrota. Mas, neste caso, por que realizar a prova, que serve basicamente para discriminar entre vencedores e perdedores?
Uma defesa assim veemente do favoritismo poderia nos levar a classificar Asma como um neoliberal elitista, que não está nem aí para o sofrimento dos menos favorecidos. Fazê-lo, entretanto, seria um erro. Eu pelo menos não consegui vislumbrar nenhum viés de classe na obra do autor. Ao contrário, ele mobiliza seus conceitos para justificar cotas raciais e outras políticas rejeitadas por conservadores clássicos.
Para Asma, o problema das éticas consequencialistas é que elas praticamente exigem que todos recebam o mesmo tratamento, estabelecendo um igualitarismo forte. Quem leva esse aspecto às últimas consequências é Peter Singer que afirma que aqueles que já ganham o suficiente para viver com certo conforto têm o dever de doar o excedente para ajudar os que não tiveram tanta sorte. O cálculo do que cabe a cada um precisa ser totalmente imparcial e basear-se no princípio utilitário, que é o de levar o maior bem ao maior número possível de seres sencientes (vale lembrar que Singer é o grande inspirador dos direitos dos animais).
É fácil perceber que há uma série de paradoxos nos esperando na esquina. Se o filho de um desconhecido tem exatamente o mesmo valor que o meu, se o mendigo com que cruzo na rua exige a mesma consideração que dispenso a meu melhor amigo, então instituições como a família e a amizade ficam no limiar da inviabilidade. Para Asma, cada caso precisa ser considerado separadamente e de acordo com suas especificidades e detalhes circunstanciais.
No debate entre éticas consequencialistas e deontológicas, o filósofo fica com Aristóteles e o modelo da ética da virtude. Seus parentes próximos no mundo moderno são autores como Michael Waltzer, Michael Sandel e Alasdair MacIntyre, que tiram a ênfase do igualitarismo para colocá-la na comunidade. As pessoas se unem por vínculos variáveis, que podem estar na família, nos amigos, nos companheiros de culto, falantes da mesma língua, compatriotas etc. São essas relações que dão sentido à vida, muito mais do que os abstratos círculos éticos em expansão de Singer.
Segundo Asma, um experimento mental proposto por William Godwin no século 19 resolve a questão: você está no meio de um incêndio com mais duas pessoas e só tem a chance de salvar uma delas. A primeira é o arcebispo Fénelon e a outra é uma empregada. Fénelon está prestes a finalizar e publicar "As Aventuras de Telêmaco" (uma importante defesa dos direitos humanos), mas a empregada é a sua mãe. O princípio utilitário (maior bem para o maior número) exige que salvemos o religioso, mas o pronome "minha" diante de "mãe" faz com que esqueçamos quaisquer ideias sobre imparcialidade.
Concordo com Asma que é desumano exigir das pessoas que passem por cima da biologia para dispensar a todos a mesma consideração, mas continuo achando que essa precisa ser a lógica do Estado, que, afinal, é um ente abstrato que não se deixa influenciar nem por oxitocina nem por opioides endógenos. Mesmo que a igualdade de oportunidades não passe de uma miragem, penso que regrediríamos bastante se partíssemos do pressuposto de que, como a meta não pode ser atingida, não devemos nem sequer persegui-la.
PS - Por razões de logística, não poderei escrever a coluna on-line da semana que vem.
Hélio Schwartsman
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/1267918-abaixo-a-igualdade.shtml

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