domingo, 28 de abril de 2013

Mania de carrão Leia coluna da filósofa Marcia Tiburi: Nas ruas enfartadas, o capitalista motorizado ostenta seu poder TAGS: coluna, Marcia Tiburi, Opinião MARCIA TIBURI O automóvel é para poucos um meio de transporte. Produto para a indústria e o mercado, ele deve surgir como fetiche na consciência coisificada dos usuários. É dessa coisificação que depende o sucesso das vendas e o aumento da produção. O aumento da produção gera emprego, dirão uns, gera capital, dirão outros. Que o carro seja central na economia política de uma sociedade marcada pelo descaso com o transporte público explica a supremacia do privado, o poder do dinheiro em detrimento da cidadania. O núcleo bárbaro de nosso estado social refere-se também ao declínio do espaço público ocupado pelos carros em uma sociedade motorizada quando já não há por onde seguir. É evidente que o espaço social da rua, este espaço desvalorizado onde vivem excluídos e marginalizados, moradores sem casa, se tornaria o lugar onde o capitalista motorizado ostentaria seu poder automobilizado. O motorista realiza a ideia de que a racionalidade técnica é a racionalidade da dominação por meio de sua máquina impressionante. Andar a pé, uma prática totalmente antitecnológica, tornou-se um perigo, cujo risco é deixado ao despossuído. A posse é o espaço a ser percorrido. Os carros nas grandes cidades congestionadas surgem como marcadores de lugar: quem pode mais ocupa mais espaço em relação a quem pode menos. Assim é que a sociologia do trânsito de nossa época tem que se ocupar não apenas com a divisão do espaço, mas com a tradicional avareza do capitalismo aplicada ao movimento nas grandes cidades. Não se trata mais do simples direito de cada um à cova medida; o movimento lento dos carros nas ruas enfartadas lembra o funeral em que todos estão a caminho de um grande enterro. Fetiche automobilístico O carro faz parte da mitologia cotidiana. Ayrton Senna foi o deus maior sacrificado no ritual do automobilismo, ritual do qual participam as massas encantadas com seus brinquedinhos mais baratos. Mas para entender o fenômeno do fetiche automobilístico de nossos tempos podemos pensar algo ainda mais elementar: quem compra um carro nunca compra apenas um carro, compra a ideia vendida pela propaganda do carro. A ideia é sempre a mesma, compra-se um poder. Com o poder na forma de um carro, o motorista pode transitar pela rua. Um carro permite a ostentação fundamental que se tornou meio de sobrevivência em uma sociedade competitiva na qual, mesmo não sendo um vencedor, sempre se pode parecer um. A ostentação é parte essencial do sistema simbólico em que o reconhecimento deturpado diz quem somos e o que podemos ser dependendo do que possuímos. Do mesmo modo que o menino rico ganha um carro dos pais assim que aprende a dirigir não porque o carro seja necessário, mas porque é sinônimo do tornar-se adulto ou pelo menos do parecer adulto, o menino pobre que trabalha como empacotador no supermercado economiza dinheiro para comprar um carro porque, também ele, entende que é o carro que o torna alguém numa sociedade de pilotos. Assim, ele não questiona seu trabalho escravizado, pois pode chegar ao fim da corrida alcançando o bem desejado por todos os que, na qualidade de vencedores ou vencidos, não se colocam a questão de parar a corrida. Assim é que entendemos o caráter de máscara dos automóveis. A questão de ser quem se é define-se no meio de transporte que se usa. Da bicicleta ao carro blindado, do ônibus que sai da periferia à Ferrari, cada um é reduzido ao transporte que usa. Quem não tem carro, pois ele está ao alcance de todos independemente dos sacrifícios implicados em sua aquisição e manutenção, pratica um ateísmo. O dono do carrão expõe, como um exibicionista expõe seu sexo, uma verdade teológica.


Mania de carrão

Leia coluna da filósofa Marcia Tiburi: Nas ruas enfartadas, o capitalista motorizado ostenta seu poder
MARCIA TIBURI
O automóvel é para poucos um meio de transporte. Produto para a indústria e o mercado, ele deve surgir como fetiche na consciência coisificada dos usuários. É dessa coisificação que depende o sucesso das vendas e o aumento da produção. O aumento da produção gera emprego, dirão uns, gera capital, dirão outros. Que o carro seja central na economia política de uma sociedade marcada pelo descaso com o transporte público explica a supremacia do privado, o poder do dinheiro em detrimento da cidadania. O núcleo bárbaro de nosso estado social refere-se também ao declínio do espaço público ocupado pelos carros em uma sociedade motorizada quando já não há por onde seguir.
É evidente que o espaço social da rua, este espaço desvalorizado onde vivem excluídos e marginalizados, moradores sem casa, se tornaria o lugar onde o capitalista motorizado ostentaria seu poder automobilizado. O motorista realiza a ideia de que a racionalidade técnica é a racionalidade da dominação por meio de sua máquina impressionante. Andar a pé, uma prática totalmente antitecnológica, tornou-se um perigo, cujo risco é deixado ao despossuído. A posse é o espaço a ser percorrido. Os carros nas grandes cidades congestionadas surgem como marcadores de lugar: quem pode mais ocupa mais espaço em relação a quem pode menos. Assim é que a sociologia do trânsito de nossa época tem que se ocupar não apenas com a divisão do espaço, mas com a tradicional avareza do capitalismo aplicada ao movimento nas grandes cidades. Não se trata mais do simples direito de cada um à cova medida; o movimento lento dos carros nas ruas enfartadas lembra o funeral em que todos estão a caminho de um grande enterro.
Fetiche automobilístico
O carro faz parte da mitologia cotidiana. Ayrton Senna foi o deus maior sacrificado no ritual do automobilismo, ritual do qual participam as massas encantadas com seus brinquedinhos mais baratos.
Mas para entender o fenômeno do fetiche automobilístico de nossos tempos podemos pensar algo ainda mais elementar: quem compra um carro nunca compra apenas um carro, compra a ideia vendida pela propaganda do carro. A ideia é sempre a mesma, compra-se um poder. Com o poder na forma de um carro, o motorista pode transitar pela rua.
Um carro permite a ostentação fundamental que se tornou meio de sobrevivência em uma sociedade competitiva na qual, mesmo não sendo um vencedor, sempre se pode parecer um. A ostentação é parte essencial do sistema simbólico em que o reconhecimento deturpado diz quem somos e o que podemos ser dependendo do que possuímos.
Do mesmo modo que o menino rico ganha um carro dos pais assim que aprende a dirigir não porque o carro seja necessário, mas porque é sinônimo do tornar-se adulto ou pelo menos do parecer adulto, o menino pobre que trabalha como empacotador no supermercado economiza dinheiro para comprar um carro porque, também ele, entende que é o carro que o torna alguém numa sociedade de pilotos. Assim, ele não questiona seu trabalho escravizado, pois pode chegar ao fim da corrida alcançando o bem desejado por todos os que, na qualidade de vencedores ou vencidos, não se colocam a questão de parar a corrida.
Assim é que entendemos o caráter de máscara dos automóveis. A questão de ser quem se é define-se no meio de transporte que se usa. Da bicicleta ao carro blindado, do ônibus que sai da periferia à Ferrari, cada um é reduzido ao transporte que usa. Quem não tem carro, pois ele está ao alcance de todos independemente dos sacrifícios implicados em sua aquisição e manutenção, pratica um ateísmo. O dono do carrão expõe, como um exibicionista expõe seu sexo, uma verdade teológica.
    Leia coluna da filósofa Marcia Tiburi: Nas ruas enfartadas, o capitalista motorizado ostenta seu poder
    MARCIA TIBURI
    O automóvel é para poucos um meio de transporte. Produto para a indústria e o mercado, ele deve surgir como fetiche na consciência coisificada dos usuários. É dessa coisificação que depende o sucesso das vendas e o aumento da produção. O aumento da produção gera emprego, dirão uns, gera capital, dirão outros. Que o carro seja central na economia política de uma sociedade marcada pelo descaso com o transporte público explica a supremacia do privado, o poder do dinheiro em detrimento da cidadania. O núcleo bárbaro de nosso estado social refere-se também ao declínio do espaço público ocupado pelos carros em uma sociedade motorizada quando já não há por onde seguir.
    É evidente que o espaço social da rua, este espaço desvalorizado onde vivem excluídos e marginalizados, moradores sem casa, se tornaria o lugar onde o capitalista motorizado ostentaria seu poder automobilizado. O motorista realiza a ideia de que a racionalidade técnica é a racionalidade da dominação por meio de sua máquina impressionante. Andar a pé, uma prática totalmente antitecnológica, tornou-se um perigo, cujo risco é deixado ao despossuído. A posse é o espaço a ser percorrido. Os carros nas grandes cidades congestionadas surgem como marcadores de lugar: quem pode mais ocupa mais espaço em relação a quem pode menos. Assim é que a sociologia do trânsito de nossa época tem que se ocupar não apenas com a divisão do espaço, mas com a tradicional avareza do capitalismo aplicada ao movimento nas grandes cidades. Não se trata mais do simples direito de cada um à cova medida; o movimento lento dos carros nas ruas enfartadas lembra o funeral em que todos estão a caminho de um grande enterro.
    Fetiche automobilístico
    O carro faz parte da mitologia cotidiana. Ayrton Senna foi o deus maior sacrificado no ritual do automobilismo, ritual do qual participam as massas encantadas com seus brinquedinhos mais baratos.
    Mas para entender o fenômeno do fetiche automobilístico de nossos tempos podemos pensar algo ainda mais elementar: quem compra um carro nunca compra apenas um carro, compra a ideia vendida pela propaganda do carro. A ideia é sempre a mesma, compra-se um poder. Com o poder na forma de um carro, o motorista pode transitar pela rua.
    Um carro permite a ostentação fundamental que se tornou meio de sobrevivência em uma sociedade competitiva na qual, mesmo não sendo um vencedor, sempre se pode parecer um. A ostentação é parte essencial do sistema simbólico em que o reconhecimento deturpado diz quem somos e o que podemos ser dependendo do que possuímos.
    Do mesmo modo que o menino rico ganha um carro dos pais assim que aprende a dirigir não porque o carro seja necessário, mas porque é sinônimo do tornar-se adulto ou pelo menos do parecer adulto, o menino pobre que trabalha como empacotador no supermercado economiza dinheiro para comprar um carro porque, também ele, entende que é o carro que o torna alguém numa sociedade de pilotos. Assim, ele não questiona seu trabalho escravizado, pois pode chegar ao fim da corrida alcançando o bem desejado por todos os que, na qualidade de vencedores ou vencidos, não se colocam a questão de parar a corrida.
    Assim é que entendemos o caráter de máscara dos automóveis. A questão de ser quem se é define-se no meio de transporte que se usa. Da bicicleta ao carro blindado, do ônibus que sai da periferia à Ferrari, cada um é reduzido ao transporte que usa. Quem não tem carro, pois ele está ao alcance de todos independemente dos sacrifícios implicados em sua aquisição e manutenção, pratica um ateísmo. O dono do carrão expõe, como um exibicionista expõe seu sexo, uma verdade teológica.

    TEXTO DO CARRO


    http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2012/12/era-do-automovel-empacou.html

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