domingo, 26 de maio de 2013

INTERPRETAÇÃO DE TEXTO. FAZER E MANDAR NO WORD Não ouvir”, a coluna de Wisnik no jornal O Globo

“Não ouvir”, a coluna de Wisnik no jornal O Globo

Não ouvir
(coluna publicada no jornal O Globo 24 maio 2013)
O pianista André Mehmari é um dos maiores fenômenos da música instrumental surgida no Brasil nos últimos tempos
O pianista André Mehmari é um dos maiores fenômenos da música instrumental surgida no Brasil nos últimos tempos. Quem acompanha o gênero conhece certamente a sua técnica espantosa, sua fluência única e sua capacidade de transitar com sobra entre os estilos da música popular e da música de concerto. Seu recital recente na Sala São Paulo remetia, sem medo do paralelo, a uma versão brasileira do paradigma Keith Jarrett, o pianista que tem o instrumento como uma extensão total do corpo e que improvisa numa zona sem fronteiras entre as formas que o piano acumulou. Mehmari relata no Facebook uma experiência recentíssima e a seu modo chocante, que desafia a nossa capacidade de ler o estado atual das coisas.
Antes de passar a ela, uma observação a mais sobre a comparação entre Jarrett e Mehmari, marcando agora não a semelhança mas uma diferença estética, para não deixar a comparação de passagem num plano muito simplista. Jarrett é angustiado, problematiza o silêncio que o ronda, envereda pelo fragmento e pelo choque, entre o jazz, a música clássica e os impasses da arte moderna. Mehmari é de uma musicalidade sem dramas, de fundo romântico, que jorra nos moldes daquela que a lenda consagrou como sendo a de Villa-Lobos, que não conhece nem coloca limites à sua inesgotável capacidade de expressão.
Vamos aos fatos. André foi participar de um espetáculo para 600 crianças de escolas públicas, com idades entre 10 e 12 anos, num dos teatros municipais de Campinas, no bairro da Vila Industrial. Acho que o programa se chama “Ouvir para crescer”, e se iniciava com uma parte em que atores apresentavam de maneira divertida, caracterizados como palhaços, as características da linguagem musical. Até aí o roteiro pedagógico-cultural transcorria sem sustos. Em seguida entrava André, que apresentaria músicas de Ernesto Nazareth, fazendo as pontes, que ele é mestre em fazer, com outros repertórios. Ao começar uma explicação sobre a sua participação, e mesmo antes de tocar, começou a receber vaias e xingamentos pesados, intensivos, que se multiplicaram e continuaram ao longo de toda a apresentação.
Mehmari é uma pessoa sem pose, suas apresentações são informais e guiadas pela vontade sincera de contribuir. A rejeição não se aplicava a eventuais pompas ou a alguma ostentação de atitude. Imagino que ela se dá, primeiro, na passagem do tom divertido da primeira parte ao tom mais sério e concentrado que ele imprimia. Junto com este vêm certamente, misturados na reação cega da massa de xingamentos, o peso oficial da escola desacreditada, confundido com o estranhamento de classe social, que o pianista deve ter encarnado involuntariamente naquela situação ao mesmo tempo específica e sintomática.
Antes de qualquer outra consideração, é preciso dizer que a reação cega e coletiva ao outro, informe, não elaborada, dada de antemão e deixando sem ação os monitores do programa ironicamente intitulado “Ouvir para crescer”, com o agravante de que vinha de pré-púberes, é um sinal, entre outros, de pontos de ruptura no tecido civilizatório que passa pela escola. Notícias recentes, vindas de muitas partes, de violências no espaço escolar, dentro ou fora da sala de aula, indicam essa espécie de liberação do ataque físico ou verbal, a colegas ou a professores, como uma prática disseminada da qual a plateia referida pode ser vista como um corpo de aprendizes já em plena atividade.
Mais que isso, eles estão imitando procedimentos que estão se dando de muitas formas e em muitos lugares, não só nas chamadas classes C e D, como era o caso, mas nas A e B, na escola, nos debates, nas instituições, na rua. Gozar mais a derrota do time adversário do que a vitória do próprio time é um dos sintomas dessa síndrome. Quem quiser entender isso precisa escapar da lamentação moral de classe média sobre a falta de educação nas famílias. Não que ela não exista, e não seja um dos focos da questão, mas é que ela faz parte de uma rede de identidades que se constituem precariamente sobre a relação rivalitária de indivíduos e grupos cuja afirmação de existência depende da negação frontal do outro. É uma queda do laço simbólico que supõe a troca e a aceitação da própria fragilidade, das próprias insuficiências e das próprias contradições.
A cultura alta levada para jovens plateias pobres (no caso, Nazareth!), pode fazer o papel de ingênua, nesse contexto em que os muros e os fossos reais e imaginários prevalecem. Mas a questão, para mim, continua sendo a de ultrapassar os muros e os fossos, nas duas direções.

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