quarta-feira, 5 de junho de 2013

GUEST POST: QUEM É O SUJEITO DA LIBERDADE, AFINAL?


PROPOSTA DE DISSERTAÇÃO : ( DEPOIS FAÇO, ESTOU CORRENDO AAGORA)
Tenho muito orgulho de publicar o guest post da Amana Mattos, a mais nova professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Faz tempo que ela me brindou com a ideia deste post, que está relacionado com sua tese de doutorado, mas ela estava ocupada demais estudando pro concurso. E agora que passou, aprimeira coisa que fez foi escrevê-lo. Desfrutem deste postabsolutamente brilhante, que traz inúmeras reflexões para nossas lutas e nossos conceitos de liberdade.

Quando conversamos com adolescentes e jovens, e perguntamos sobre seus desejos para o futuro, a resposta “quero ser livre, quero ser independente, don@ do meu próprio nariz” é das mais escutadas. Quando comecei meu doutorado em Psicologia, alguns anos atrás, me perguntei sobre os sentidos que os jovens –- moradores do Rio de Janeiro, onde vivo –- dão para a ideia de liberdade, e como esses sentidos podem nos ajudar a entender melhor as relações e as subjetividades do mundo em que vivemos.
Mas tão logo comecei minha pesquisa, vi que precisava entender melhor os conceitos de liberdade que são referência no mundo em que vivemos –- pós-modernidade, contemporaneidade, atualidade, como preferirem... Assim, mergulhei de cabeça no estudo das teorias liberais, que influenciaram profundamente a constituição da sociedade ocidental, do Estado laico, da democracia representativa. O que fui descobrindo é que a ideia de liberdade mais recorrente hoje, que é defendida nos botequins, nos tribunais, nas discussões entre vizinhos, está impregnada de dois conceitos muito caros à teoria liberal: em primeiro lugar, a noção de liberdade enquanto ausência de obstáculos. É a velha ideia de que sou tão mais livre quanto menos impedimentos se colocam à minha ação. Essa noção (também conhecida como liberdade negativa, pois não é um atributo do sujeito, mas a simples ausência de coerção) é a base para o individualismo liberal. Todos somos livres, todos somos indivíduos. E existem regras necessárias para que as liberdades individuais não entrem em choque. “Sua liberdade termina onde...”, bom, vocês conhecem a máxima.
O segundo conceito, fundamental para se entender a liberdade liberal, é a ideia de autonomia. Apenas um sujeito autônomo, isto é, que segue livremente os princípios de ação eleitos por ele para orientar sua vida, apenas um ser razoável a esse ponto, pode ser livre. Em nossa sociedadedemocrática há um outro nome para essa posição: o cidadão. Alguém que responde por seus atos, que é autossuficiente, independente.
Bem, até aqui, nenhuma grande novidade. Imagino que tod@s já tenham ouvido falar dessas ideias em maior ou menor medida. O que eu gostaria de trazer como contribuição num momento em que tanto se discute o machismo, o direito das mulheres, a sociedade que queremos, são algumas reflexões sobre esse conceito de liberdade. Para isso, preciso dizer que a leitura das autoras críticas feministas tem sido fundamental para abrir meus olhos e coração para as entrelinhas cotidianas da dominação e da opressão.
Quando pensamos sobre quem é esse “sujeito da liberdade”, exaustivamente descrito e construído pelas teorias sociais e filosóficas modernas, podemos identificar uma importante característica: o sujeito livre é independente. Pode parecer redundância, mas se entendermos isso como independência econômica, as coisas já mudam de figura. Para ser livre, é preciso “pagar as próprias contas”, é preciso estar disponível para ir e vir, não ter laços de dependência que me prendam a uma determinada situação. Sabemos o quanto essa situação foi, historicamente, mais difícil de ser conquistada pelas mulheres. Se falamos de mulheres pobres, então, oproblema se complica ainda mais. Recentemente, aqui no blog, vimos um longo debate sobre “quem paga a conta” num encontro amoroso. Ficou muito claro, nos comentários, como associamos a possibilidade de poder pagar sua parte numa conta com um sentimento de maior liberdade. Sem dúvidas, essa ideia é pertinente e muito atual. Mas e quando a mulher não tem renda própria, o que é muito comum no casamento, por exemplo? A ideia de liberdade atrelada à independência econômica começa a mostrar seus problemas aí...
Muitas feministas vão colocar essa discussão de cabeça para baixo, numa estratégia que considero brilhante. Ao invés de partir imediatamente em defesa da conquista da tão sonhada autonomia e independência para todas as mulheres, por que não pensamos em como, em que condições o conceito mesmo deautonomia foi construído, inventado? Não há como extrair da história de um conceito todo o seu passado de opressão e dominação –- no caso, de gênero. Os grandes pensadores da liberdade e da independência foram homens. E não apenas homens. Homens brancos, das elites, dos países ricos. Será que todas essas características simplesmente desaparecem de suas ideias quando eles se põem a escrever?
A divisão entre espaço público –- o espaço da política, das lutas importantes e gloriosas –- e espaço privado –- o domínio das atividades menores, do descanso, das trivialidades –- mostra bem isso. Tradicionalmente, o espaço público é dos grandes homens. A casa, a cama, a mesa e o banho, das mulheres. A suposição de atributos como a independência e o desligamento do mundo das necessidades é constitutiva da concepção de indivíduo livre. Em oposição a esse destacamento, vale lembrar que a permeabilidade do corpo feminino é constantemente produzida por práticas e experiências como, por exemplo, a penetração sexual, os exames ginecológicos, a gravidez e o parto, o que nos colocaria em contato com relações de consentimento e coerção nos domínios mais íntimos de nossos corpos. Uma feminista de quem gosto muito, Daiana Coole, afirma: “se o conceito de liberdade negativa não especifica os homens como seus beneficiários, sua lógica implica fortemente que estes últimos são não-mulheres”.
As coisas estão mudando? Sim, estão. Mas o que ganhamos ao defender a liberdade individual nos termos mais liberais -– valorizando em última instância a independência e a autonomia, por exemplo -– como principais bandeiras das mulheres? 
Pensemos nas grandes questões que envolvem as lutas feministas. Todas elas sãoatravessadas por uma exigência que,historicamente (aqui insisto no uso do termo: os papéis de gênero são construídos, não há essência nas posições femininas e masculinas), foi negada às mulheres. A divisão sexual do trabalho garantiu, por séculos a fio, que os grandeshomens (ricos, letrados) pudessem se trancar em seus escritórios e ler, pensar, fumar charutos e discutir os negócios, enquanto as mulheres davam conta dos pequenos conflitos domésticos, das rotinas desinteressantes e repetitivas de cuidado dos filhos, das roupas, das refeições, ainda que isso envolvesse orientar outrAs empregadas para que o trabalho de casa fosse feito. Sim, pode parecer estranho, mas a separação entre público e privado tem tudo a ver com a ideia de liberdade liberal individualista.
Se lutamos por liberdade –- o que considero uma grande luta –- precisamos refletir sobre o que queremos quando dizemos que queremos ser pessoas livres. Essa questão também se coloca para os homens, certamente, mas penso aqui especificamente no que toca às mulheres. Será preciso reeeditar argumentos velhos e machistas da teoria liberal? Ou devemos pautar lutas, agir cotidianamente, nos inspirando em modos de relação que possivelmente não seriam considerados “livres” desse ponto de vista? Por que desqualificamos, por exemplo, a mútua dependência, a colaboração, a emotividade e afetividade das relações, traços tão comuns nas relações femininas, ou que envolvem as mulheres? Quando essas características surgem, o que se vê muitas vezes é a acusação de que não se trata de relações (de trabalho, sociais, interpessoais) “sérias”, “maduras”, “responsáveis”. Se acreditamos que para sermos livres é preciso ser, acima de tudo, independentes e autônom@s, estamos atualizando (sem perceber)um triste histórico de opressão e dominação de nossa sociedade ocidental. E nessa história, as mulheres -– assim como os pobres, os negros, os gays, os não ocidentais, e tantos outros –- foram as maiores vítimas.
http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2011/06/guest-post-quem-e-o-sujeito-da.html


http://lounge.obviousmag.org/por_tras_do_espelho/2013/06/o-desejo-de-liberdade-e-o-nosso-destino-inescapavel.html?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+OBVIOUS+%28obvious+magazine%29

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