segunda-feira, 24 de junho de 2013

O emplasto. Machado de Assis. Exercícios de Texto

O emplasto
1 Um dia de manhã, estando a passear na chácara,
pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro.
Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a
4 fazer as mais arrojadas cambalhotas. Eu deixei-me estar a
contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços
e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.
7 Essa ideia era nada menos que a invenção de um
medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco,
destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade.
10 Na petição de privilégio que então redigi, chamei a
atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente
cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens
13 pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto
de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou
cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me
16 influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais,
mostradores, folhetos, esquinas e, enfim, nas caixinhas do
remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que
19 negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de
lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio,
porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis.
22 Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma
virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia
e lucro; de outro, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória.
25 Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava
dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas,
que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro
28 tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor
da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no
homem e, consequentemente, a sua mais genuína feição.
31 Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao
emplasto.
Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. Obra completa, v. I.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, p. 514-5 (com adaptações).
Com relação ao texto acima, à obra Memórias Póstumas de Brás
Cubas e a aspectos por eles suscitados, julgue os itens de 64 a 75
e assinale a opção correta no item 76, que é do tipo C.
64 O compromisso do narrador com a verdade dos fatos,
honestidade decorrente da vida além-túmulo, e o seu interesse
pela ciência e pela filosofia aproximam a narrativa de
Memórias Póstumas de Brás Cubas da forma de narrarAs “arrojadas cambalhotas” (R.4) da ideia inventiva de Brás
Cubas relacionam-se à forma como Machado de Assis compôs
esse romance, no qual o narrador intercala a narrativa de suas
memórias com divagações acerca de temas diversos, o que
produz constante vaivém na condução do enredo.
66 A narrativa das diferentes faces de uma mesma ideia expressa
a singularidade do realismo machadiano, que ultrapassa as
convenções realistas — focadas em desvelar as razões
econômicas das causas humanitárias — e alcança dimensão
mais profunda: a de desnudar o cinismo com que filantropia e
lucro são reduzidos a caprichos do defunto autor em sua “sede
de nomeada” (R.24).
67 A partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o conjunto
da obra machadiana divide-se em duas fases: a primeira é
constituída por obras em que o foco narrativo é em terceira
pessoa e o tema revela interesse pela sorte dos pobres, como
em Helena, por exemplo; a segunda é formada de obras
construídas a partir da perspectiva do narrador-personagem
associado à classe dominante local, a exemplo deDom
Casmurro.
68 No trecho “pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha
no cérebro” (R.2), a combinação dos pronomes “se” e “me”
exemplifica a variante padrão da língua portuguesa à época do
texto. No que se refere ao português contemporâneo, uma
estrutura equivalente que manteria a ênfase no sujeito da oração
e a correção gramatical seria a seguinte: uma ideia pendurou-se
no trapézio que eu tinha em meu cérebro.
69 Se considerada a noção de signo linguístico no trecho “até
tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te” (R.6),
observa-se uma relação não arbitrária entre o significado de
“X” e o seu significante, assim como acontece com o signo
“ideia” no trecho “a minha ideia trazia duas faces, como as
medalhas” (R.22).
70 No trecho “Na petição de privilégio que então redigi” (R.10), o
pronome tem a função de complemento do verbo.
71 O termo “tudo” (R.15) especifica e resume as ideias evocadas na
estrutura após o sinal de dois-pontos.
72 O termo “estas três palavras” (R.18) é complemento direto de
“ver” (R.16) e sintetiza o termo coordenado que antecede essa
expressão.
73 Em “hão de reconhecer” (R.21), o verbo auxiliar denota tempo
futuro e de obrigatoriedade de ação, o que ratifica, no nível
estrutural, a oposição postulada pelo autor entre “modestos”
(R.20) e “hábeis” (R.21).
74 No texto, o vocábulo “sede” (R.24) significa ânsia, desejo edistingue-se de sede, local onde funciona a representação
principal de firma ou empresa. No que se refere a esses dois
vocábulos, o acento tônico é o recurso da língua com
capacidade de discriminar os significados distintos.
75 No trecho “Ao que retorquia outro tio, oficial” (R.27-28),
observa-se oração adjetiva como elemento modificador do
aposto, que inicia o período.76 A frase “Decifra-me ou devoro-te” remete ao enigma da
esfinge, consagrado na tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles.
A formulação de um enigma envolve jogos de palavras e
associações semânticas ambíguas e paradoxais, que parecem
conduzir a respostas impossíveis ou absurdas. A decifração de
um enigma está associada, portanto, a grande capacidade de
raciocínio e de reflexão e, não menos, a domínio das palavras
e da língua. Assim, quem decifra um enigma será considerado
um ser superior, de saber excepcional, cujas palavras serão
respeitadas e seguidas. Com relação às questões envolvidas na
decifração de um enigma e ao tema a que o texto de Machado
de Assis se reporta, assinale a opção correta.
A A resolução, pelo narrador, da situação enigmática
demandou o processo de uma ideia em evolução e, assim,
a resposta, ou seja, a invenção do emplasto Brás Cubas,
não encerra ambiguidade nem paradoxo, ao contrário do
que ocorre com os demais enigmas.
B O poder intelectual do narrador evidencia-se em ações de
relevância humanitária, o que, como enfatiza o próprio
narrador, alcança reconhecimento em instâncias de
representação política.
C A reação do narrador a comentários dos tios sinaliza que
o embate entre tipos e âmbitos de poder é resolvido pelo
saber.
D O episódio da resolução do enigma evoca um momento
vitorioso de Brás Cubas no que se refere à sua capacidade
de admitir sentimentos passionais por meio de
argumentação racional.
http://www.cespe.unb.br/vestibular/1VEST2012/arquivos/VEST12012_001_01.pdf

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