sábado, 15 de junho de 2013

Já somos monitorados demais

15/06/2013 - 03h30

José Luis Oliveira Lima: Já somos monitorados demais


Membros da Al-Qaeda devem ter ficado satisfeitos em saber que, sob o pretexto de combater o terrorismo, o governo americano instalou uma ampla rede de espionagem por meio do monitoramento geral e indiscriminado de seus próprios cidadãos.
As informações são imprecisas, mas sabe-se que números de chamadas telefônicas de todos os cidadãos foram disponibilizados para serviços governamentais de inteligência. Os dados municiaram os trabalhos de agentes secretos que inseriram e depois retiraram os responsáveis pelo atentado na maratona de Boston do rol de suspeitos. Espiões que, talvez, foram colegas de curso dos ingleses que viram no brasileiro Jean Charles um terrorista no metrô londrino.
Essa bisbilhotagem poderá causar mais estragos do que uma bomba. Certamente existirão os abusos, bastando lembrar que o governo americano que espiona "para o bem" é o mesmo que atiça a fiscalização tributária contra seus opositores e que vasculha ligações telefônicas de jornalistas.
Ainda que sem os inevitáveis abusos, a própria democracia será atingida, uma vez que a intimidade é um elemento essencial para a dignidade da pessoa humana. Desnudado desse pequeno campo de proteção particular, o cidadão perde a capacidade de se enxergar como um ser único e titular de direitos. Por consequência, também não consegue compreender e respeitar as particularidades do outro. Sem o resguardo da vida privada, não há ambiente para o desenvolvimento livre da personalidade, acabando com o oxigênio vital para a sobrevivência de um Estado democrático.
No Brasil, felizmente, a proposta americana de devassa indiscriminada não seria admitida em nosso sistema jurídico. Aqui, a quebra de sigilo somente pode ser autorizada por uma decisão judicial devidamente fundamentada, demonstrando que existem indícios de que aquele específico cidadão é um possível autor de um determinado crime. Primeiro deve vir a fundada suspeita, depois a investigação, jamais o contrário. A violação à intimidade é tratada como medida de exceção, mas, ainda assim, são constantes os abusos.
Confrontadas com uma ordem abusiva, as próprias empresas responsáveis pela guarda dos dados sigilosos podem lutar pelo resguardo da intimidade de seus registros.
Diante de uma ordem de quebra de sigilo manifestamente indiscriminada e genérica, instituições financeiras, operadoras de telefonia e provedores de internet podem impetrar mandado de segurança para impedir uma devassa coletiva que ameace a privacidade de seus clientes.
Exemplificando, um banco possui legitimidade jurídica para se insurgir contra uma ordem de entrega de extratos de todos os clientes de uma agência. Defende-se o direito de guardar segredos. O indivíduo alvo da violação, logicamente, também pode agir para impedi-la ou cobrar reparação pelo dano sofrido.
Ações em defesa da intimidade são cada vez mais necessárias no mundo moderno. Hoje, cada um de nossos passos fica registrado: a compra com cartão de crédito, a multa do automóvel, a conversa na rede social, os sites acessados, os números discados. Ao vivermos já somos involuntariamente monitorados.
Esse enorme banco de dados pode evidentemente ser utilizado no combate ao crime, mas somente diante de uma fundamentada suspeita contra o cidadão. Buscar um maior poder do Estado no uso da tecnologia para um controle social extremo significa rejeitar a democracia e correr em busca do autoritarismo. É justamente nesse momento em que nossa segurança é ameaçada que devemos nos lembrar de que garantias individuais como a intimidade não representam um entrave a nossa proteção, mas, sim, traduzem a essência de nossa humanidade.
JOSÉ LUIS OLIVEIRA LIMA, 47, é advogado criminalista e membro do Instituto dos Advogados de São Paulo
5/06/2013 - 03h30

Joanisval Gonçalves: Big Brother e democracia

Quando, em 1949, George Orwell escreveu o romance "1984", tratou de uma sociedade futurística, na qual o Estado controlava os cidadãos de maneira absoluta, vigiando-os no mais íntimo de sua privacidade, determinando sua maneira de pensar.
Retratou um Estado onipresente, representado pela figura do Big Brother, que tudo via e tudo sabia. Entretanto, "1984" tratava de um regime totalitário. No século 21, o Grande Irmão chegou às democracias.
Nas últimas semanas, com a revelação de que o governo dos Estados Unidos estaria reunindo dados a partir de interceptações telefônicas e acessos irregulares a mensagens e contas na internet de milhões de pessoas, o tema do Estado controlador do cidadão voltou à tona.
Nenhum direito individual é absoluto. A vida em sociedade requer a mitigação de alguns direitos individuais diante de certas necessidades coletivas, como a segurança. Assim, se as pessoas estiverem sob uma ameaça de significativa gravidade, o Estado pode mesmo violar a privacidade para protegê-las, sob a justificativa do imperativo da segurança.
Esse é o argumento do governo Obama. E encontra acolhida em mais da metade dos estadunidenses, segundo pesquisas recentes: 56% dos entrevistados aprovam o monitoramento das comunicações telefônicas, enquanto 41% consideram a prática inaceitável.
Ao menos nos Estados Unidos, o assunto ainda suscitará discussão. E ali parece razoável que o Estado monitore seus cidadãos para protegê-los. Sob a perspectiva do povo norte-americano, a garantia da segurança coletiva e a proteção aos valores democráticos e aos princípios fundadores de sua nação seriam justificativas plausíveis para limitar liberdades individuais.
É certo que direitos fundamentais podem se ver limitados por razões de Estado, em especial quando a sociedade é alvo de ações contrárias à ordem democrática estabelecida. Porém, para que o Estado limite direitos dos cidadãos, é fundamental que haja critérios que impeçam que agentes públicos cometam arbitrariedades.
O monitoramento das contas e comunicações dos indivíduos, se ocorrer, deve ser feito sob rígidos mecanismos legais e institucionais de controle. Caso contrário, abusos serão cometidos pelos órgãos de segurança e inteligência, uma vez que lidam com informação e poder.
De fato, algo que diferencia os regimes democráticos dos autoritários é que, no primeiro caso, os serviços secretos protegem o cidadão e estão sob o mais rígido controle do Judiciário e do Legislativo. Também a sociedade civil organizada, com destaque para o papel da imprensa, deve ter essa prerrogativa.
Se, no país de Obama, é possível e até aceitável de acordo com suas leis, que o Estado monitore os cidadãos, no Brasil essa prática encontra limites claros. A Constituição só permite interceptação telefônica para fins de investigação criminal ou instrução processual e apenas com autorização judicial.
Entretanto, muito difícil será impedir que autoridades estadunidenses monitorem as comunicações de brasileiros. Afinal, quem controlará as ações de política externa dos Estados Unidos? Que força terão os governos de outros países para impedir ou neutralizar iniciativas tecnológicas intrusivas da superpotência?
Seria ingênuo imaginar que, se houver uma determinação de um governo como o dos Estados Unidos, respaldada em leis e em autorização judicial ou legislativa, as informações pessoais de qualquer ser humano pelo globo ficarão a salvo do monitoramento.
Na era do conhecimento e da realidade virtual, as pessoas devem estar conscientes de que podem ser objeto de vigilância, legal ou não. O Big Brother está lá, ainda que não gostemos dele.
JOANISVAL BRITO GONÇALVES, 38, é advogado e especialista em inteligência de Estado pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência)

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