quarta-feira, 26 de junho de 2013

O QUE FOI MAIO DE 1968? SOBRE O FILME OS SONHADORES.


1968. As ruas de Paris estão em polvorosa. Se “a revolução não será televisionada”, os jovens tomam de assalto as avenidas, ruas e bulevares da capital que o Barão Haussmann (1809-1891), braço arquitetônico de Napoleão III, havia projetado como um antídoto às redivivas barricadas. É de se esperar, então, que a trama de um filme ambientado em tal contexto se espraie pela torrente revolucionária das palavras de ordem e dos coquetéis Molotov, não é mesmo? Eis que o diretor Bernardo Bertolucci subverte a revolução das ruas e volta sua câmera para as ações intimistas d’Os sonhadores (2003). 

Os irmãos gêmeos e edipianos Theo e Isabelle, frequentadores contumazes da Cinemateca Francesa, logo travam amizade com um cinéfilo ainda mais obcecado, o universitário americano Matthew. “Talvez a tela de projeção não fosse nada além de um anteparo que nos protegia do mundo. Mas houve uma tarde, na primavera de 68, em que o mundo finalmente ultrapassou a tela de projeção”. Matthew sente forte atração por Isabelle, que, à beira de adaptar Édipo, ama o irmão Theo, que, por sua vez, estimula o incesto fraterno e, ao mesmo tempo, não deixa de tentar a sorte junto a Matthew. O triângulo está formado e logo se instala no apartamento dos anfitriões franceses. 

− Venha morar conosco, Matthew, nossos pais vão adorar você! 

George, pai dos irmãos sonhadores, é um poeta de renome. Theo não aceita a omissão do pai nas efervescentes questões políticas de seu tempo. 

− Por que você não assinou a petição contra a Guerra do Vietnã? Não foi você que escreveu que “Uma petição é um poema/ Um poema é uma petição”? Não são seus versos mais célebres? 

Antes de calar o filho com a autoridade do pai (ausente e) provedor, George responde a Theo com uma máxima que bem pode servir como uma epígrafe para o filme: 

− A negação do mundo implica também saber que se é parte dele. 

George e sua esposa vão embora – não sem antes legar aos filhos o cheque semanal que os exime dos papéis de pai e mãe. 

Maio de 68 trouxe à tona uma série de questionamentos sobre os valores tradicionais. Se “é proibido proibir”, qual o limite das negações revolucionárias que pretendem fazer tábula rasa da História? Se “a negação do mundo implica também saber que se é parte dele”, em que medida a atitude dos pseudopais de Theo e Isabelle não reproduz a indiferença e o individualismo burgueses sob o pretexto de rompimento com as práticas da família tradicional? E que dizer da revolução dos sonhadores edipianos que transforma o mundo oniricamente dentro do confortável apartamento custeado pelos cheques do pai artista – e burguês? 

Theo, Isabelle e Matthew passam a entrelaçar a realidade à ficção. Os sonhadores caminham rente à fronteira da realidade ficcional, a bem dizer. Seus dias são embriagados por livros, discussões fílmicas, amor – e vinho. Garrafas e mais garrafas dos melhores vinhos franceses. Enquanto os estudantes revolucionários se engajam na contraposição efetiva da realidade que a eles resiste com gás lacrimogêneo, Theo, Isabelle e Matthew revolucionam a ficção de seu poliamor com cenas clássicas do cinema que tentam dar sentido à novidade de suas experiências. Maio de 68 veio para ressignificar uma série de práticas e valores ossificados. Nesse sentido, se o trio de sonhadores quer impedir Édipo de se cegar por conta do amor incestuoso, a quem eles podem recorrer senão à ficção? A realidade só lhes seria judiciosa e refratária. Matthew, cinéfilo erudito, cita a bíblia das imagens em movimento, os Cahiers du Cinéma (Cadernos do Cinema): 

– O cineasta é como um voyeur. É como se a câmera fosse o buraco da fechadura do quarto de seus pais. 

Theo, em um banho de espuma com Matthew, ouve atentamente. Súbito, o amante francês desponta com uma réplica inusitada: 

– Meus pais sempre deixaram a porta aberta de par em par. 

A resposta de Theo traz à tona uma revolução que o irmão de Isabelle viveu desde a infância. Em meio a uma família não familiar, será que o complexo de Édipo faz sentido como categoria de análise? Ora, a máxima do pai ausente mais uma vez se impõe:

– A negação do mundo implica também saber que se é parte dele. 

Theo e Isabelle haviam vivido, no microcosmo de seu apartamento, uma (de)formação que pudera antecipar as transformações de maio de 68. A revolução há muito lhes era cotidiana, mas o ritmo de modificação do mundo circundante não caminhava com a mesma velocidade. Os combates preparavam o terreno para que o conservadorismo burguês fosse atacado sob a guarnição das barricadas. Para Theo e Isabelle, no entanto, o apartamento custeado pelos pais já descortinava o que as décadas pós-68 transformariam em práticas rotineiras. (Ou será que vivenciaríamos a liberdade – e a banalidade – sexual da contemporaneidade se maio de 68 não houvesse bradado em alto e bom som que nenhuma nudez deveria ser castigada?) Por esse prisma, Theo, Isabelle e Matthew não são alienados típicos. Por mais explosiva e revolucionária que a realidade das ruas se apresentasse, o poliamor que os três vivenciavam transformava o apartamento no logradouro da utopia. A utopia, o não-lugar (u-topos) – no limite, o lugar nenhum. Mesmo com o magnetismo de seios tão esculturais quanto os da Vênus de Milo, Isabelle começa a temer pelo poliamor idílico diante da falta de realidade efetiva fora da realidade ficcional que ocupa todo um andar do belo bairro de Saint Germain. Um beijo intenso de Matthew e Isabelle é interrompido pelas imagens televisivas de maio de 68 atrás da vitrine de uma loja. O capitalismo começa a mostrar aos manifestantes que a revolução será televisionada. 

Theo: Matthew, por que você não está no Vietnã? 

Matthew: Eu tenho sorte, estou na universidade. Mas eu tenho amigos que não estão na universidade. Eles são dispensáveis... 

Bernardo Bertolucci desvela a origem dos soldados proletários que carregam os sonhadores sobre os ombros fatigados. Soldados que não vivenciam a utopia do poliamor, já que estão encenando seus papéis de protagonistas anônimos ou coadjuvantes principais em Apocalypse Now (1979), a trama distópica de Francis Ford Coppola em meio à Guerra do Vietnã. (Para os miseráveis que devem pregar a liberdade de mercado com bombas e napalm, o ópio será a única realidade ficcional, a única utopia.) 

Theo: Matthew, por que você não pensa em Mao Tsé Tung como um grande diretor fazendo um filme com milhões de atores? Aqueles milhões de guardas vermelhos marchando juntos para o futuro com seu Livro Vermelho nas mãos! Livros, não armas. Cultura, não violência. Você não vê que filme épico e belo seria feito? 

Matthew: É fácil falar de livros, e não de armas. Mas em seu filme não há livros. É só um livro. Um único livro. Os guardas vermelhos, aqueles de que você gosta, levam o mesmo livro, todos cantam a mesma canção, repetem a mesma ordem. Nesse grande filme épico, todos são coadjuvantes. 

Matthew sintetiza a cruzada que impulsionou maio de 68 na mesma medida em que as reivindicações revolucionárias foram sendo absorvidas pelo capitalismo cada vez mais metamórfico. As contestações deram vazão à criação de novos nichos de mercado. Senão, vejamos: a crítica devida que Matthew faz à ditadura chinesa também pode ser aplicada ao capitalismo de massas. A pluralidade de opções mascara sob os diferentes rótulos a mesmice da mercadoria. Tese de maio de 68: Sejamos realistas, peçamos o impossível. Antítese da Adidas: Impossible is nothing. (Nada é impossível.) Tese do movimento punk: Do it yourself! (Faça você mesmo!) Antítese da Nike: Just do it! (Apenas faça!) O capitalismo soube se transformar e transformar os valores tradicionais a reboque das contestações de 68. “Tudo o que é sagrado é profanado, tudo o que é sólido desmancha no ar”. Assim Marx procurou apreender o movimento perpétuo, contraditório e autofágico do capitalismo. Imbuídos do espírito de que “é proibido proibir”, os publicitários de uma famosa rede brasileira de fast food árabe criaram uma inusitada promoção. A propaganda mostra um discurso inflamado de Fidel Castro. Em meio à multidão ouvinte, desponta uma esfiha de carne vestida com a boina de ninguém mais que Ernesto Che Guevara. Fidel é inusitadamente interrompido para que a esfiha anuncie a “revolução nos preços”, a mais nova promoção da rede. 

Quando Isabelle se dá conta de que a utopia está fadada a terminar, a bela amante de Theo e Matthew constrói uma cabana de lençóis para resguardar o poliamor. Para continuar a sonhar de olhos abertos, é preciso estancar a realidade ficcional. Enquanto Matthew e Theo dormem, Isabelle tem uma ideia: o gás do fogão lhes trará a asfixia indolor e transformará o ménage à trois em uma bela foto cinematográfica. A morte dos atores não lhes deixará viver a dor da separação. O gás começava a confundir o sono com o desmaio letal quando, de repente, a realidade volta a invadir as frestas mal vedadas da ficção: uma pedra revolucionária estilhaça a janela. 

Isabelle: A rua veio voando para o quarto! Este cheiro é de gás lacrimogêneo! 

A tomada final apresenta a imersão de Matthew, Theo e Isabelle na multidão que até então lhes fora alheia. Maio de 68 sentencia aos brados:

− A barricada fecha a rua, mas abre o caminho!

O capitalismo de massas compreende a demanda de mercado e lança mão de seus agentes publicitários e fardados para que a revolta se transforme em espetáculo: 

– A barricada fecha a rua, mas a polícia abre o caminho. 

*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo. 

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