quarta-feira, 26 de junho de 2013

Intermitências da Memória: O legado de Maio de 68

Intermitências da memória: o legado do “maio de 68” francês
Por Fabio Mascaro Querido
“O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história” (Tese VI), 1940.
Toda rememoração do passado carrega consigo, inevitavelmente, uma visão específica do presente, temporalidade na qual os sentidos do ontem e do amanhã são permanentemente interpelados, reconstruídos, redimensionados. É sempre do presente que interrogamos o passado, e por isso, o ocorrido nunca é apresentado “tal como ele propriamente foi”, mas sim à luz de um “agora” entendido como instante político por excelência. O passado, como o presente, está em constante “disputa”. A herança não é um objeto inerte, mas sim aquilo que dela farão os herdeiros. É nesse sentido que, como diria Walter Benjamin, o passado interpela criticamente o presente.

Revolta
Os debates em torno do legado do assim chamado “maio de 68” francês, que se proliferam a cada data comemorativa, refletem esta “constelação saturada de tensões” entre o passado e o presente, entre o que efetivamente foi e aquilo que, no presente, pensamos ou gostaríamos que tivesse sido. Este embate “representativo”, mais do que uma disputa meramente historiográfica, constitui uma expressão de perspectivas políticas divergentes (se não antagônicas). Deste ponto de vista, seria o caso de indagar: qual o significado histórico, político e cultural do imaginário de “maio de 68” hoje, 45 anos após a sua irrupção real? O que as lutas operárias e estudantis daquele período tem a nos dizer no mundo contemporâneo, quando a fusão entre vida e arte (projetada pelos surrealistas e reivindicada pelos jovens de 1968) foi canalizada pelos imperativos da sociedade da mercadoria?
Para não poucos autores, alguns à esquerda do espectro político, Maio de 68 não foi senão o marco simbólico que removeu os últimos obstáculos à emergência da sociedade de consumo (mais tarde neoliberal), cimentando, desse modo, as bases ideológicas e culturais do pós-modernismo. Esta leitura estreita e unilateral, que não vê nos acontecimentos de 68 senão o estopim de uma revolta lúdica e efêmera, que prenunciaria por razões diversas o hedonismo pós-moderno, transformou-se na leitura “oficial” das inúmeras “comemorações” da data, como se, de fato, a “vitória” do Maio francês – se ela existiu - correspondesse à decisiva contribuição para o que, enfim, a sociedade se transformou: uma sociedade dominada pelos desígnios da mercadoria, cuja “modernidade” plena logrou eliminar quase definitivamente os entraves “tradicionais” (ético-morais) que bloqueavam o advento do sonhado mundo da liberdade mercantil. Tal leitura parece se confirmar à luz do fato de que parte significativa dos jovens protagonistas das lutas da época tornaram-se membros muito bem adaptados à ordem que naquele momento julgavam combater.
Memória
Daí as intermitências de uma memória que se transforma no tempo, e que responde a interesses específicos alojados no presente. Se não, como explicar que este período de lutas, no qual estalou (é preciso dizer) a mais massiva e mais longa greve geral da história, início de uma nova vaga de lutas operárias na Europa, seja transformado no ponto de partida simbólico de um paradigma societário caracterizado, entre outras coisas, pelo avanço inexorável da lógica mercantil que se alastra por todos os poros da vida social? Trata-se, sem dúvida, de uma inexorável amostra da capacidade do capitalismo “pós-moderno” de “integrar” demandas potencialmente subversivas, metamorfoseando-as em aspectos palatáveis à “diversidade” da sociedade das mercadorias. Mais difícil de explicar, porém, são as razões pelas quais muitos autores situados à esquerda no campo intelectual visualizam em Maio de 68 o início de uma decadência generalizada da política revolucionária, daí em diante gradativamente suplantada pela emergência fulminante dos “novos movimentos sociais”, apanágios práticos da diluição teórica pós-moderna.

Resgate
Se, ao contrário, na contramão das apropriações pós-modernas (paradoxalmente legitimadas por alguns guardiões da ortodoxia), se reconhece nos acontecimentos daquele período um momento importante da tradição de lutas dos oprimidos, em sentido anticapitalista, torna-se nítido que a eclosão de um individualismo sem individualidade e de um hedonismo sem prazer (avalizada pelos “novos filósofos” emergentes) não são o resultado de Maio de 68, e sim a consequência da sua derrota e do seu refluxo – para os quais contribuíram, vale dizer, as direções políticas e sindicais (PC e OS) hegemônicas no movimento operário. Sua rememoração constitui, portanto, hoje em dia, uma meditação sobre a derrota, mas sobre uma derrota que, ao ameaçar alterar o curso das coisas, legou ensinamentos decisivos às gerações posteriores, combustíveis utópicos que podem impulsionar os enfrentamentos atuais contra a transformação do mundo em uma grande mercadoria.
Para os jovens e os operários combatentes de 1968, assim como para muitos dos movimentos sociais e políticos atuais, “o mundo não é uma mercadoria”. Para os oprimidos do presente, é este o Maio de 68 que deve ser resgatado e rememorado, o Maio de 68 contra o qual vociferou Nicolas Sarkosy na campanha eleitoral em 2007. A rememoração ativa deste passado recente, à diferença das “comemorações” conformistas, só pode ser realizada por aqueles que, no presente, dão seguimento às lutas e ao horizonte anticapitalista entreaberto em 68, isto é, por aqueles que anteveem no imperativo de “revolução total” que ali se manifestou (buscava-se, ao mesmo tempo, mudar a vida e transformar o mundo) um horizonte estratégico ainda atual e necessário. Estes sabem que, sem memória do passado, não há luta pelo futuro. E sabem também que a herança encontra-se ainda em disputa, constantemente ameaçada pela apropriação apaziguadora por parte daqueles para os quais o legado de maio de 68 constitui uma ameaça à continuidade de sua dominação.
Remomoração Revolucionária
De onde a necessidade – defendida por Walter Benjamin nas “teses sobre o conceito de história” – da rememoração revolucionária da “tradição dos oprimidos”, a fim de impedir que ela seja metamorfoseada, por assim dizer, “em instrumento da classe dominante”. “Em cada época”, diz Benjamin (tese VI), “é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao conformismo que está na iminência de subjugá-la”. Como? “Escovando a história a contrapelo” (tese VII), quer dizer, visualizando-a do ponto de vista dos “vencidos”, daqueles que resistiram ao “cortejo triunfal” das classes dominantes de sua época. É sob esta ótica que acontecimentos como os que ocorreram em maio-junho de 1968, na França, constituem uma “iluminação profana” permanente para as lutas das classes subalternas a cada novo presente, quando olham para as lutas do passado buscando prefigurações críticas daquilo que visualizam para o futuro.


 Fabio Mascaro Querido é  doutorando em Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
FONTE REVISTA CAROS AMIGOS

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